quarta-feira, 24 de março de 2010

Contos do Vigário 10

Eu queria contar-vos um cliché.
Gostava de vos dizer que o encontrei numa estação de comboios. Todo ele perfeito. De barba por fazer, em tons de moreno, de cabelo em tamanho certo, alto e espadaúdo, como se quer. Queria dizer-vos, acreditem ou não, que meti conversa para lhe pedir uma caneta - eu que ando sempre com uma bic de tampa roída na mala. e ele deu-ma. Uma caneta às flores. Corou e disse-me que era da irmã. Ai, a voz ...
Mas não posso dizer-vos isto. O mundo está para acabar em guerras e ataques que ninguém percebe. O mundo anda depressa demais para que eu me possa apaixonar à primeira vista.
Já vos disse que ele também vinha para Braga? Sentei-me atrás dele a fingir que lia a Visão dessa semana. Não me perguntem sobre o que falava o Ricardo Araújo Pereira ou o José Luís Peixoto.
Ele virou-se para trás. E eu concentrei todas as minhas forças em não hiperventilar. E voltei a embasbacar-me perante a voz dele.
Mas o mundo gritava crises e epidemias para que eu não ouvisse o Adónis que me falava. E o mundo está para acabar caso não o leve ao colo ate ao próximo ecoponto.
E ele fez conversa sobre a reportagem que ainda não tinha lido e o sobre o livro de oferta dessa semana, razão pela qual eu comprei a revista. E eu ali estava, prós-trada no banco, sem saber o que dizer de certo ou de inteligente.
Eu queria dizer-vos, pelo menos, que trocámos mails e números de telefone. Mas não posso. Tenho de me apaixonar primeiro pelo mundo. E tratá-lo bem. Para que no mundo nasça uma força como num coração apaixonado. Para que o mundo viva com a barriga apertada de borboletas. Para que o mundo seja feliz.
Mas não. O mundo vive de ódios. O mundo vive de ressacas de paixão. Vive de desamores.

Morreram dezenas de pessoas enquanto leram isto. De fome. De sede. Doentes. Com balas. De desgosto. Desapaixonados.


Kiara Minerva

4 comentários:

  1. Bem Kiara parabéns pelo extraordinário texto que publicas! Consegues de uma forma tão simples mostrar como está o mundo. É um prazer ler estes textos, e só me resta desejar que o continues a fazer...

    Abraço de camara de luta

    P.S.(adorei esta do camarada de luta! ahahah!)

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  2. Prólogo de um homem apaixonado

    “Desisto de viver”. Era este o único pensamento que me restava. Abandono completo, descrença surreal na existência humana. “Que sentido???”, questionava infinitamente preso num marasmo consentido. “Deus morreu num cruzamento, deixando apenas o rasto do seu rival e, para total desabrigo, nem o demónio resistiu ao mundo que sonhou… Quem sou, para onde vou???”. Era nesta prisão, de vidros altos que me estatelava na constância dos tempos – o sentido da vida não era agora mais que um projecto de morte… Nesta total abstinência de sentimentos, sentado na paragem do expresso, aguardo a diligência que me conduzirá, prostrado num lenho, para sítio nenhum: “não espero que te libertes de mim essência, mas que morras no exacto momento em que cair redondo no chão”. O hediondo mundo edílico, onde contava por única companhia o santíssimo e benevolente Dionísio, era o espaço onde tinha colocado o tapete de entrada. Uma casa, de paredes caídas, onde tudo era mais calejado que o exterior de mim. O aconchego da impermanência é tanto melhor quanto maior a entropia que nos guia.
    Mas seguia: arrastando cada osso a força de ter de ser. Tombava, e sorria: “não existem dias maravilhosos?”. Desistir estava fora dos planos. E se planos existiam, apenas duas palavras os faziam ter sentido: avançar e amar.

    Pai Natal

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  3. Certo é que metade do mundo se encontra desavessado, ridiculamente infeliz e inaproveitado.
    Mas enquanto muito morrem "De fome. De sede. Doentes. Com balas. De desgosto. Desapaixonados", existem outros tantos, ou talvez mais, que realmente sentem a barriga a apertar de borboletas, que expandem toda a sua essência no mais profundo sentimento de felicidade. Nem o é... Mas, não raras vezes, é o livre arbítrio de cada um que torna o mundo negro. E parte de cada um aclará-lo.
    Eu sou feliz! Vou sê-lo sempre enquanto achar que não faz sentido fazer parte da metade negra do mundo.
    "I know the heart of life is good"

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  4. Tio Chinquilha obrigado mais uma vez pelo teu apoio. E sim, seremos camaradas de luta até ao fim =)

    Pai Natal (ainda bem que adoptas-te o nome que te dei, muito grato!) e Zeus, só posso concluir, das vossas palavras, que se encontram bem de amores. Não sei se as vossas amadas (sim, tenho a impressão que vocês são homens heterossexuais) saberão o que vocês aqui escrevem. Senão souberem, digam-lhes, que acho que elas ficariam contentes.
    E sim, não tenho nada a contrapor ao que disseram. Realmente, tal como "Que sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança" também o amor será um grande impulsionador para a humanidade. Pelo menos assim o espero.

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