Vida
Não tinha passado muito tempo. Não tinha ainda passado, pelo menos, o tempo suficiente. Lá em casa o luto andava ainda encostado às paredes. Ainda a Avó chorava, ainda a roupa cheirava a mágoa. Ainda tinha bem na memória o cheiro da capela e das lágrimas dos familiares. Ainda podia sentir as mãos frias que o irmão tinha quando lhe fecharam o caixão.
Era tudo demasiado recente. Ainda toda a gente queria vingança, ainda toda a gente tinha a dor a transbordar pelos olhos. Mas a preocupação dela era outra. Era tudo tão recente e já achava que as fotografias não eram as do irmão. Ainda se lembrava de como tinha recebido a notícia, ainda se lembrava dos olhos vazios do Pai, mas já não se lembrava do tom de pele do irmão. E só se tem um irmão mais velho. Tenha-se os que se tiver, eles são todos um: o irmão mais velho. E ela tinha perdido o dela.
Sabia que os olhos dele eram de um tom de castanho claro, emoldurados por umas enormes pestanas negras. Mas já não se lembrava do sabor dos seus beijos quando ele os dava à hora de deitar. Sabia que o seu cabelo era liso de um tom mel, e que de tão crespado ficava sempre espetado. Sabia que tinha dois remoinhos que lhe davam dores de cabeça e que nem o gel domava. Já não se lembrava que o irmão tinha uma só covinha na bochecha (na direita) quando se ria. E era tudo tão recente...
Ela queria esquecer-se do negro que a tinham obrigado a vestir, queria esquecer-se dos abraços que lhe deram no dia em que teve de se despedir do irmão. Queria esquecer-se que disse adeus ao irmão porque o Padre lhe disse que assim tinha que ser.
Tinha medo de se esquecer das mãos morenas, aquelas que tocavam guitarra.
Já nada lhe parecia ser do seu irmão mais velho. Nem as fotografias que continuavam nos mesmo sítios de sempre.
Quis que o seu irmão tivesse uma imagem que fosse só dela, que ela nunca esquecesse. Queria que ele vivesse sempre dentro de si e para si. Pegou numa tesoura e recortou as fotografias, de modo a que ficassem os olhos separados da boca, do nariz e das orelhas. Olhou para o que tinha feito e viu que aqueles olhos não eram só os do irmão, eram também do pivot do telejornal. Pegou na tesoura e numa revista e recortou os olhos a todas as caras que havia. Ficou só com os castanhos. Fez o mesmo com as bocas, com os sorrisos, com os narizes. Ficou com tudo aquilo que a fez lembrar o irmão.
Assim, o seu irmão mais velho foi médico prestigiado, foi político, foi atleta olímpico, modelo, piloto de automóveis. Correu mundo, concretizou sonhos, fez vida e ajudou gente. O seu irmão viveu e nunca teve de lhe dizer adeus.
Kiara Minerva
quinta-feira, 27 de maio de 2010
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É como a noite, o breu, o frio, neoveiro...
ResponderEliminarEntranha-se no mais profundo de nós sem hesitar.
E o que será de nós sem a mais pura lembrança dos amados que foram, dos que irão, de nós mesmos nos que ficarem?
É cruel...
É imprevisivelmente diferente em cada um...
Não deixa de ser terrivelmente atroz...
É o luto de cada um de nós!