Desconhecido
Um dia, sem que por isso desse conta, conheci um desconhecido.
Não passava das três e meia da tarde, e eu estava sentada ao balcão num café das arcadas. Odeio estar sentada ao balcão. É lugar que não interessa. Tem que se olhar para o frenesim da cozinha e bar, ficando do costas para uma plateia de actores perfeitos. Adoro ficar sentada numa mesinha de canto, contraria à porta, de bloco em riste (ou guardanapo de papel) para poder apontar tiques, trejeitos, roupas, cortes de cabelo, frases soltas. Enfim, um sem fim de pormenores.
Estava eu de volta do meu segundo café diário, mexendo o açúcar até à exaustão da dissolução quando na cadeira ao lado se senta um Estranho. Nem sei bem como era. Acho que só fiz um apontamento mental de que tinha barba a mais para o que lhe ficava bem.
Pediu, ele, um café e de seguida um fino. Depois do primeiro gole de cerveja tocou-me no ombro:
- Desculpa, tens um isqueiro que me emprestes?
Vasculhei na mala e lá encontrei um isqueiro com a cara de um qualquer candidato às autárquicas. Pensei porque raio me tratava ele por tu, mas continuei atenta ao meu açúcar dissolvido.
Nem um minuto depois:
- Desculpa outra vez, mas tens um cigarro?
Saquei do meu maço Ritz – é a minha nova moda – e acedi-lhe um cigarro com esperança que agora me deixasse beber o café em paz.
Disse-me então, enquanto acendia o cigarro, que adorava aquele café. Tinha-o descoberto no primeiro mês em que veio morar para a cidade, e tinha ficado fã. Conhecia muita gente que ali parava, tratava os empregados por tu (e não só, pensei), conhecia a ementa de cor. Tinha adorado aquele café pela música que passava. Um mistura de épocas, humores e sons que lhe faziam bem. Passava horas no café só por causa da música.
Eu desejava que ele se calasse e que me deixasse sozinha com o meu café. Mas não, foi me fazendo perguntas às quais respondi com sons monocórdicos. E depois, sem que por isso desse conta, falava com ele abertamente. Contei-lhe de tristezas e alegrias através das músicas que iam passando no café. Num som baixinho, simpático e agradável.
Levantou-se e pagou. Disse que se ia embora. Do café e da cidade, e aquele tinha sido o seu último fino. Deu-me dois beijos na face, que ficou arranhada pela barba. E saiu de casaco desabotoado.
Agora, passei a ir ao café das arcadas. Agora, anoto as músicas que lá vão passando. Anoto alegrias, tristezas e sons da alma.
Kiara Minerva
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